Alguém fala, uma aparelhagem solta música ou um trovão ecoa pela
atmosfera e se tudo correr bem, o ouvido e o sistema nervoso transformam estas
vibrações do ar em sinais mecânicos e depois nervosos, que são sentidos como
som. Nas pessoas surdas alguma parte deste processo não funciona. A mutação
genética A1555G causa este problema a 10% dos deficientes auditivos, mas não se
sabia qual o processo que a mutação desencadeia e que acaba por provocar a
surdez, até agora. A explicação dada por uma equipa dos Estados Unidos vem num
artigo da revista Cell publicado nesta sexta-feira.
A surdez associada a esta mutação
acontece desde nascença ou quando as pessoas tomam um antibiótico específico.
“As pessoas tomavam este antibiótico e passadas duas semanas voltavam ao médico
e não conseguiam ouvir”, explicou Nuno Raimundo, por telefone ao PÚBLICO. O
cientista português está a terminar o pós-doutoramento numa equipa da Escola de
Medicina da Universidade de Yale, nos Estados Unidos. É o primeiro autor do
artigo e responsável por muitas das experiências e pela escrita do artigo.
Descobriu-se há mais de 20 anos
que este antibiótico acumulava-se em certas células do ouvido. Em algumas
pessoas mais susceptíveis a acumulação era tóxica e fazia perder a audição.
Pensava-se que a substância matava as células que ajudavam a passar o sinal
mecânico das vibrações sonoras para um sinal nervoso. Mas equipa de Nuno
Raimundo descobriu que a doença é mais complexa.
As pessoas surdas tinham mães
surdas. Na altura, isto mostrou aos cientistas que a doença podia ser causada
por uma mutação num gene do ADN da mitocôndria. “Através do mapeamento genético
identificou-se a mutação do gene mitocondrial”, disse o cientista. O gene
mutado da mitocôndria alterava a estrutura dos ribossomos – que são os
complexos que constroem as proteínas e existem tanto na mitocôndria como no
núcleo das células.
Foi com base neste paradigma que
a equipa de Yale desenvolveu o seu trabalho. A questão era como é que uma
mutação na mitocôndria provocava um fenômeno como a surdez e porque é que não
provocava mais nenhum problema noutros tecidos do corpo?
Para estudar o fenômeno os
cientistas utilizaram ratos. Como criar ratos transgênicos para mutações em
mitocôndrias ainda é impossível, fizeram um rato transgênico que produzia uma
proteína em excesso e que alterava da mesma forma a estrutura dos ribossomos.
Depois testaram se os ratos
também ficavam surdos. “Deixamos os ratos crescer e fomos medir a capacidade de
ouvir, a partir dos três meses tinham perda de audição e ao fim do ano não
ouviam praticamente nada”, explicou o cientista. A seguir foram perceber o que
se passava nas células dos ratos equivalentes às células dos humanos, que
tinham acumulado o antibiótico. “A primeira hipótese é que as tais células
estavam mortas, mas não estavam.”
Estas células, que fazem parte do
órgão de Corti, no ouvido, estão envolvidas numa solução que tem uma
concentração específica de iões. A solução é necessária para o processo de
audição. O que a equipa de Yale verificou é que tanto as células que produziam
esta solução, como os neurônios que recebem os impulsos do órgão de Corti não
estavam a funcionar bem, comprometendo a audição dos ratos.
De seguida, os cientistas
conseguiram identificar a proteína que provocava o mal funcionamento destes
dois grupos de células. Esta proteína, chamada de E2F1, põe em causa a divisão
celular e quando os cientistas retiraram-na destas células, os ratos passaram a
ouvir normalmente.
Qual a ligação entre a mutação na
mitocôndria, que causa a alteração dos ribossomos, e a existência da proteína,
que causa a surdez? “A alteração dos ribossomos da mitocôndria leva a uma
produção de radicais livres [nestas células] que ativam a E2F1”, disse Nuno
Raimundo, resumindo todo o processo desde a mutação genética até a doença.
Um dos passos seguintes do
trabalho do investigador consiste em testar antioxidantes que possam prevenir
esta surdez nos ratinhos. “Identificamos várias moléculas que intervêm nesta
via celular e pode-se testar terapêuticas que evitem o funcionamento de algumas
proteínas”, disse. O cientista sublinha que o mecanismo exato que se passa nos
humanos ainda não foi determinado, mas mostra que o fenômeno “não é como se
pensava”. Apesar da causa da surdez ser de origem genética, também é necessário
ter em conta o ambiente. “Além da exposição aos antibióticos, um dos fatores
que contribuem para a surdez é um ruído basal. É muito provável que uma
exposição a ruído elevado venha atirar esta via de sinalização se uma pessoa
tiver a mutação, mas pode vir a fazê-lo mesmo não tendo a mutação”, disse o
cientista.
Mas a descoberta tem implicações
mais profundas no conhecimento da biologia celular. As mitocôndrias dão energia
a todas as células do corpo, através do processo chamado de respiração celular.
Mas o que faz com que uma mutação destas afete os ouvidos e não afete os
músculos ou o coração, onde há uma forte necessidade de energia? “Pensava-se
que todas as células em todos os tecidos respiravam da mesma maneira, mas o que
se está a concluir é que as células em diferentes tecidos respiram de forma
diferente e por isso mutações que afetam uns tecidos, não afetam outros.”
Esta mudança de paradigma pode
ajudar a perceber o que se passa noutras doenças que também são causadas por
mutações no ADN de mitocôndrias como os diabetes, doenças do coração ou o
cancro. Ou ajudar a compreender processos mais gerais como o envelhecimento.
Por Nicolau Ferreira
Fonte: Público
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