Entre
todos os problemas importantes que preocupam os pais de crianças que
na faixa etária dos três anos começam a apresentar problemas de
fluência, um dos que mais causam dúvidas, desconforto e, por muitas
vezes, desorientação, é a definição dessa disfluência: se ela
faz parte do processo de aquisição de linguagem da criança, ou se
ela de fato representa o que os especialistas chamam gagueira do
desenvolvimento, que “surge antes da puberdade, geralmente entre
dois e cinco anos de idade, sem dano cerebral aparente ou outra causa
conhecida”, de acordo com o site do Instituto Brasileiro de
Fluência – IBF.
Felizmente,
já é possível diferenciar melhor estes dois quadros, e uma síntese
desta possibilidade é exposta com clareza no presente artigo das
fonoaudiólogas Suzana Maria de Amarante Merçon e Kátia Nemr.
As
autoras iniciam o texto afirmando que a disfluência é um fenômeno
comum na fase em que as crianças estão estruturando sua linguagem.
Mas, em alguns casos, essa disfluência pode sinalizar o início do
processo de gagueira, por isso é importante que os pais de crianças
que apresentam alguma disfluência procurem um fonoaudiólogo
especializado. Esse profissional, na atualidade, conta com uma série
de descobertas que delimitam a gagueira como um problema que afeta
áreas do cérebro responsáveis pela linguagem, além de interferir
no controle motor da fala. Tais descobertas eliminaram a
possibilidade de se supor que a gagueira do desenvolvimento é
provocada por algum acontecimento ou trauma do mundo exterior. Ou
seja, muito embora o fato de encontrar-se em situações acolhedoras
pode ajudar a criança que gagueja, apenas isso não é suficiente
para que ela deixe de gaguejar.
Além
de definir o cérebro como um local importante de origem e
manifestação dos processos que envolvem a gagueira, as recentes
pesquisas têm delimitado algumas diferenciações entre, de um lado,
as disfluências que são manifestações infantis naturais ao
período de estruturação linguística, e, de outro lado, as
disfluências que são sinais efetivos de gagueira. Vejamos algumas
dessas diferenciações, de acordo com os critérios usados pelas
autoras:
1)
Frequência: as ocorrências de disfluências na gagueira do
desenvolvimento são mais frequentes do que as disfluências comuns
da infância, que têm, em geral, caráter esporádico.
2)
Evolução: as ocorrências de gagueira podem desaparecer (remissão
espontânea) ou agravar-se com o tempo. É possível ainda haver um
cessamento temporário das ocorrências, com retorno posterior, dando
ao quadro um caráter intermitente. As disfluências comuns da
infância tendem a amenizar e desaparecer.
3)
Linguagem: há uma diferença muito importante, em termos de
linguagem, entre a gagueira do desenvolvimento e a disfluência comum
na infância: as crianças que tendem a desenvolver gagueira
apresentam problemas para emitir fonemas (o que normalmente as
pessoas chamam “letras”) e sílabas, em particular nos primeiros
fonemas das sílabas ou nas primeiras sílabas das palavras, ao passo
que as crianças que disfluem sem gaguejar, quando manifestam
problemas, o fazem em palavras inteiras, partes de frases ou frases
inteiras.
4)
Tipos de disfluência: a gagueira do desenvolvimento abarca alguns
tipos de disfluências específicas: repetições de fonemas e
sílabas; repetições de partes de palavras; prolongamentos de
fonemas, bloqueios e pausas preenchidas (interrupções na fala nas
quais a pessoa insere sons, como “ééééé´”…). As
disfluências comuns se caracterizam, como já se disse aqui, por
repetições de palavras inteiras, partes de frases ou frases
inteiras, e também por revisões de palavras (correções que o
indivíduo faz durante seu discurso, ao notar que emitiu algo
incorreto: “Ela sempre vem/vai na casa da mãe”). As crianças
com disfluência comum podem falar algumas palavras pela metade e
também fazer pausas, que podem ser silenciosas ou preenchidas.
5)
Caráter voluntário ou involuntário: a gagueira do desenvolvimento
é completamente involuntária, ou seja, não depende da vontade da
criança gaguejar ou não gaguejar. Na disfluência comum na
infância, pode haver um certo grau de deliberação e controle.
6)
Comportamento do corpo: Observa-se que as crianças que gaguejam
podem apresentar tensão no rosto e/ou no corpo, e alguns movimentos
corporais associados aos momentos em que gagueja. Esses movimentos
tendem a se intensificar com a evolução da gagueira. Na disfluência
comum na infância não se observa tensão ou movimento corporal
associado.
7)
Desempenho linguístico: Nas crianças que gaguejam pode-se observar
alguns problemas relacionados ao desempenho da linguagem: em testes
de avaliação e correção de frases mal formadas, obteve-se para as
crianças que gaguejam um desempenho inferior ao das que não
apresentam gagueira; resultado semelhante se obteve em testes de
recuperação de fonemas em não-palavras (sequências de fonemas que
não correspondem a palavras da língua), para verificiar a
habilidade em recordar-se de fonemas. Essa característica, segundo
os estudiosos, representa não uma deficiência linguística, mas sim
um problema que há entre a ativação do fonema no cérebro e a sua
produção na fala. As pesquisas em linguagem comprovam que a
gagueira não é um problema originado no aparelho fonador, muito
embora suas manifestações o atinjam.
8)
Outras manifestações: As crianças que gaguejam costumam ser
impacientes com sua dificuldade de falar, têm dificuldade em manter
contato visual com as pessoas com quem conversam, e não raro
desistem de falar. Nota-se também que a gagueira pode ser
acompanhada de falta de coordenação entre a fala e a respiração,
diferentemente da disfluência comum, que mesmo quando acontece vem
acompanhada de respiração normal e regular.
Além
de enumerar aspectos importantes na distinção entre a disfluência
comum na infância e as fases iniciais da gagueira do
desenvolvimento, as autoras apresentam em seu trabalho os fatores que
podem causar confusão no processo de diagnóstico da gagueira, de um
lado, e na detecção da disfluência comum na infância, de outro.
São eles:
1)
Ao contrário da gagueira infantil, as disfluências comuns na
infância em geral são esporádicas, e a fluência tende a aumentar
com o passar do tempo. Já as crianças que gaguejam podem
apresentar períodos de fala fluente – é a chamada remissão
parcial, que pode dar a entender aos pais que a criança superou
definitivamente essa fase (já vimos que isso acontece porque a
gagueira é intermitente.) No entanto, após a remissão, os eventos
de gagueira podem voltar ainda mais evidentes e persistentes. Nos
casos de gagueira infantil, temos ainda, com frequência, a
possibilidade de recuperação espontânea.
2)
Tanto a gagueira quanto a disfluência comum na infância acontecem
em semelhantes faixas etárias. O início do processo de gagueira
coincide com o ápice dos comportamentos relacionados à disfluência
comum.
3)
As repetições, prolongamentos e bloqueios da gagueira podem
facilmente ser interpretadas como uma incerteza da criança sobre
qual palavra usar no dado momento – um traço da disfluência comum
ao processo de aprendizado da linguagem, que está ligada muitas
vezes ao preparo da criança para o que vai dizer. Observe-se que
mesmo assim os comportamentos não são os mesmos, já que na
disfluência comum a criança hesita e repete palavras inteiras, o
que não é o caso da fala gaguejada, que se caracteriza por
repetições de fonemas e sílabas, na maioria das ocorrências.
4)
Estudos mostram que existem problemas de produção de linguagem em
todas as crianças que estão aprendendo a falar. Essas semelhanças
podem mascarar o surgimento da gagueira do desenvolvimento, e
permitir que ela seja interpretada como uma dificuldade natural da
criança no trato com a língua que ela está adquirindo.
Na
avaliação fonoaudiológica da criança que apresenta problemas de
fluência, a fim de definir se eles são de fato indicativos de
gagueira do desenvolvimento, é importante prestar atenção a todos
os aspectos citados acima. E aos pais da criança que tem
dificuldades na sua fluência, é essencial que busquem um
profissional o quanto antes, de preferência no momento em que eles
notarem que a criança fala com dificuldade, a fim de que se faça o
diagnóstico de um problema ou de outro, e que haja tempo para que a
criança possa ser devidamente tratada, conforme for a sua condição.
O fonoaudiólogo especializado saberá qual conduta assumir, tanto
para os casos de disfluência comum da infância, quanto para os
casos de gagueira.
Texto
Original: MERÇON, S. A. A., NEMR, K. Gagueira e disfluência comum
na infância: análise das manifestações clínicas nos seus
aspectos quantitativos e qualitativos. Revista do CEFAC, São Paulo,
vol. 09, no. 02, 174-179, abr-jun 2007.
Posted by lucianafariasfono
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